Tem um homem tocando violão (homem-violão)

Tem um homem tocando violão lá longe…
um pontinho iluminado de holofote
Lá no fundo…muito longe, que só imagino
se é aquela cara dele mesmo
se o telão não me engana
se aquele som é de agora…dele, sabe?
Lá longe…
…de mim
de tudo…
Tem um homem tocando violão
Tiro uma foto…
Uma lembrança unilateral…
e assisto, apagado
O homem-violão
Tão pequeno…
Distante…
uma coisa só.

JL

Um dos saraus que mais gostei de fazer. Um retorno à poesia que há tanto deixei pra trás.

 

Brazil, 1964

– Comercial da Gelato, ein! Coisa de primeira! Tá feliz?
– Tô sim…
– Usa aquele vestido do seu baile de debutante.
– Eles arrumam a roupa lá…Só quero algo arrumadinho pra dar boa impressão…
– Vai ficar bem na frente do mercadão, né?
– Vai sim. Num outdoor!
– Todo mundo vai falar de você, Regina!
– Já imaginou? Que engraçado! Olha só! Não lmbrava disso aqui.
– O Auto da Compadecida? Vivia relendo!
– Ah, se quiser pode levar…
– Se cansou?
– Besta! Foi só pra peça. Já passou…
– Você era quem?
– A Compadecida, você sabe.
– A principal!
– Não. Os principais eram Chicó e João Grilo. Eu só apareço pro fim, sua boba.
– Mas a Compadecida é a mais importante.
– É…Salvou João Grilo, salvou um tanto de gente.
– Faz pra mim? A Compadecida.
– Você sabe como é! Lia isso mais que eu.
– Deixa de ser chata…Me mostra…
– Ai, tá…João Grilo cantou uma música e aí…
– Não! Faz como você fez! Como você falou.
– Ah, não lembro todas as falas. Lembro umas minhas e outras do Diabo.
– Fala o que você lembra.
– João Grilo pergunta se eu, a compadecida, me ofendi pela musiquinha que cantou pra me chamar. Era alegre.
– Não! Faz a Compadecida!
Calma, menina! Já chego lá! João diz que o Diabo enrasca com tudo, que tudo é falta de respeito e eu digo: “É máscara dele, João. O Diabo é muito apegado às formas exteriores.” Aí o Diabo diz algo assim:”Salvar todo mundo acaba desmoralizando tudo!” Aí eu falo pra Jesus: “Interceda por esses pobres, meu filho. Não os condene.” Quase tudo que eles faziam era por medo. E então não lembro…Ah! Tem outra que eu digo: “João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa.” E assim vai até Jesus se apiedar. E o Diabo, indignado por Jesus me dar ouvidos, fala: “Não tem jeito não. Homem governado por mulher, é sempre sem confiança!”
– Bonito…A Compadecida aparece pra dar um puxão de orelha em Jesus.
– Que pecado, Letícia!
– É, ele perdeu a compaixão por um momento. Queria preservar as regras vigentes, mesmo que isso custasse uma grande injustiça com os mais pobres, os mais vulneráveis.
Você acha melhor essa blusa rosa?
– Acho que a branca combina contigo. Ei, presta atenção! Ela se coloca no lugar dos mais pobres, sabe? Do sofrimento dessas pessoas oprimidas.
Lá no Nordeste é triste mesmo. Vou de saia? Ou é melhor uma calça?
– É uma alegoria, Regina. Aquela gente é toda a gente que sofre, em qualquer lugar. Eu passo por uns moradores de rua todo dia.
Ai, eu também. Dá um negócio né?
– Dá pena. Não é justo com eles. É isso que a Compadecida fala.
Passo Laquê? Tô pensando em deixar o cabelo solto. Me ajuda com o zíper? Não lembro como fica, acho que é aquele que aperta.
– Achei muito metafórico, sabe?
Pra variar, né Letícia!
– Foi sua primeira peça, não foi?
Peça séria, sim.
– E você não pegou o papel do Chicó, do João Grilo. Foi logo a Compadecida.
Não peguei porque era papel de homem.
– Você poderia fazer um homem.
Que isso! Papai não ia gostar e nem eu! Não sou uma invertida!
– Você foi a Compadecida, Regina. Parece até um sinal.
Sinal do quê, sua maluca?
– Seu primeiro trabalho como atriz ter sido através daquela Maria do Suassuna. A Compadecida. Isso é muito forte.
Sabe o que eu acho? Que você merece ficar com esse calhamaço!
– Eu não levo jeito pra atriz, Regina. É você que não pode esquecer…
Esquecer do quê, menina?
– De que você foi a Compadecida. Talvez ainda precise ser de novo…
Num filme! Imagina o sucesso!
– Não, Regina. Talvez você ainda precise lembrar alguém importante, que a vida dos mais vulneráveis importa.
Você deveria ser mais leve, Letícia.
– Como assim?
Vamos ver novela! É hoje que o Dr. Garcia vai tentar matar o D. Rafael!

JL

Patrícia

O tic-tac do copo, aquilo irritava Patrícia. Ela olhava pra comida interrompida, “tic-tac…tic-tac” tentando suportar o sonzinho, suportar o que sabia ser seu. A colherinha de café, usada pra tudo e deixada no escorredor sem lavar. Era o preço pra sua mania adquirida do “café depois tudo”.
Pra ser bem doce, sem fundinho de açúcar, era preciso tolerância ao “tic-tac”…”tic…tac”. Tem perdido a calma ultimamente. É a sensibilidade da quarentena, dizem. Deixa a colher e a busca obsessiva pela coisa homogênea.
Além do “café depois de tudo” adotou aquela coisa de “tomar um ar” na janela da sala. Coisa de velho…Tem tentado os livros bobos, programas de rádio, noticiários dos canais menores, dos monólogos, dos comentaristas sóbrios.
Da janela vinha frio, noite pontilhada das formigas elétricas, dos formigueiros insones em retângulos luminosos de vidro. Estava arrumada. De batom, vestido longo, perfume e bolsa pronta pra lugar nenhum. Até forrou a mesa, enfeitou de porcelana, pediu coisa fina no ifood.
Vem comer a sobremesa. – O viva voz chamou no whatsapp.
Patrícia vai sozinha, penteada, bonita pra si mesma. Mantém a ligação sem vídeo. Gostava de desencorajar a realidade. Eles se viam por fotografias.
Ela olhava pra mesa, pro celular apoiado na embalagem de lasanha do almoço. Se lembrava quando tinha gente ali. Um dia teve gente ali, ela tinha certeza, se lembrava.
Marcos estava, Valéria estava, Júnior estava. Seus 36 anos estavam.
O sentimento de falta também estava, mais amortecido que agora, mas estava.
A caixinha de isopor é aberta. Uma tortinha do Raggazzo: pequena e cara. Uma extravagância. Mas era de verdade e é raro comer coisa de verdade. A modernidade diz que coisa de verdade deve ser cara ou feita em casa.
Patrícia não tinha jeito pra cozinha. Achava bom sinal. Marcos também. Marcos…aquela fotografia falante. A novela brilhou pela penumbra da sala-cozinha.
Falas baratas, romances falsos. Até que se divertiu; descansou da vida; acompanhou com franqueza. Olhou nos olhos do ator, acreditou nele. Se apaixonou por dois segundos.
Arrumou os cachos, se levantou, foi até o banheiro acendendo luzes por medo do escuro. Olhou o espelho, se sentiu bonita. Desbotou uma selfie. Depois preferiu monocromática. Disse que tinha sono pra fotografia de Marcos. Desligou. Varreu o tapete por ansiedade. Deixou a louça pra trás por preguiça.
Decidiu descer, buscar o carro na garagem, no alto da noite.
Se ninguém via, ela sentia que o perigo também não via.
Não se preocupou com as maçanetas, com álcool em gel. Ligou o carro, o painel acendeu, a música interrompida do Still Corners voltou a tocar. A música da última vez. Patrícia não se lembrava da última vez.
Saiu pelas ruas vazias, espiando o mundo que os jornais diziam ter mudado. Um mundo iluminado nas luzes familiares da madrugada. Era o vazio de sempre, das altas horas. Do silêncio que precede o dia seguinte. Tudo inspirava uma normalidade iminente.
Como se dali a pouco, as ruas cuspissem um mar de gente, perdidas no vazio de sempre. A Pauliceia desvairada que Patrícia já sentia falta, feito uma irmã irritante que andou sumida por muitos anos.
Desligou o carro. Fingiu-se carro estacionado. Olhou pros letreiros acesos da drogaria SP. Segurou o choro. Parecia uma clareira de normalidade logo ali, decidiu entrar. Procurou nas prateleiras alguma coisa que precisava, uma cura.
Se demorou. A moça do caixa encontrou Patrícia encarando as caixinhas, consternada.
– tá foda. – ela disse.
E a moça do caixa fez que sim, como quem abraça.

JL

Sarau revoltirinhas – telefonema

– Você prefere que ele saiba pela TV? Por um jornal desses?
– Ele já tava sabendo antes.
– É. Mas piorou. Quer dizer: Eles GOSTAM de dizer que piorou.
– Não vou entrar nessa discussão contigo. É melhor só deixar isso passar, sabe. Lá nem deve ter TV.
– Tem internet e tudo. Eu mesmo assinei o contrato. Faz dois anos já.
– Então ele já tá sabendo.
– Tá tudo bem então? O negócio é aceitar?
– Você ligou pra ele?
– Liguei. Tava daquele jeito. Não dá pra saber, sempre todo fingido. Todo filho da puta…
– Foi sendo fingido que ele conseguiu segurar a barra em 68.
– Eu disse: fingido e filho da puta. Mostra aí, Luiz! Qual a vantagem de ser filho da puta? Tu num é o “positivão”?
– Posso te mostrar um murro na tua cara.
– Eu só não quero nenhuma tragédia, porra. Tá todo mundo surtando.
– E se a gente fosse lá ficar com ele? Tipo, a gente não conta nada. Assim: a gente vai pra ficar junto mesmo, sabe? Leva carne, faz churrasco. Aquele jogo de tabuleiro doido que ele gosta. Fica uns…3 dias.
– Você tem tempo pra isso? Porque eu não tenho. A gente vai, conta. Traz ele pra cá!
– Vai pra sua casa ver você e a Sandra brigando? ou pra minha ficar fazendo companhia pro cachorro?
– A gente conta! Passa uma tarde com ele e você fica lá. Eu cuido das entregas. A Sandra me ajuda.
– Tem tempo pra fazer dois trabalhos, mas não tem pra ficar com o pai…tu é foda.
– É melhor que o nada que você tava oferecendo.
– Ele é velho de guerra, cara. Passou por uma ditadura. Esse cara aí do governo é só um maluco, os tempos são outros.
– Sei lá…Ah, Luiz. Numa semana dessas ele veio com um papo meio emotivo…me assustou.
– A gente liga pra ele pelo Skype. Marca de ir. Ok?
– Ele vai dizer que não.
– Tem certeza que ele tava emotivo?
– Ele tava bêbado, mas tava. A Vera contou que ele anda estranho…mais sozinho. Outro dia pegou ele xingando.
– Xingando?
– É! No banheiro. Vera disse que ele tava resmungando alguma coisa, manhoso…
– Sei lá…eu fico sentimental quando tomo uns porres, e ninguém tá bem.
– É…ninguém tá.
– A gente faz uma visita semana que vem. Nessa não tem como. As entregas tão apertando.
– Foda que semana que vem a pista ainda vai tá bloqueada.
– É, mas tem a estradinha.
– É só pó e buraco. Vai ser a maior grana pra trocar a suspensão depois.
– Sei lá…ele vai ficar bem. Só falou merda. Quem não fala?
– É…vou deitar que a Sandra já foi.
– Tá bom. Qualquer coisa você sabe: pode contar com a gente.
– Digo o mesmo.
– Vai vir pro almoço amanhã?
– Nah. Não vai dar. Ainda quero limpar a caixa de gordura. Mas a gente vai combinando.

JL

Sarau revoltirinhas – A literatura

A literatura é elitizada e está sendo difícil dizer isso assim, abertamente. Porque sempre pensei que o que me separava das grandes obras, da genialidade contemporânea da literatura brasileira era simplesmente minha falta de disposição de ir até uma biblioteca, de ir até uma livraria.
Até o dia em que fui até a biblioteca, e fui até a livraria. As pessoas simplesmente não conhecem, sabem por cima das coisas antigas “Machado de Assis” e outras coisas empoeiradas, mas nada de agora. Do agora sabem dos livros descartáveis, americanos, juvenis.
Você nem sabe como pesquisar, como se pesquisa isso? Tentei coisas do tipo “Oscar da literatura”, e de lá surgiram prêmios e autores, mas não tocava o ponto. Não tocava como Clarice Lispector tocava, entende?
Foi muito frustrante descobrir que a literatura está muito, muito distante dos reles mortais. Se de mim está, que sou da bunda na cadeira, da obsessão pelos estudos e sempre espiando alguma sugestão, imagina pra quem procura uma vida menos ansiosa, menos obcecada.
Parece que a literatura é pra gente que nasceu com a sorte dos círculos elevados, pra gente muito “cabeça”. Mas é só aparência, eu te garanto. Os grandes nomes fascinam a mim, a qualquer um. O que se tem não são pérolas guardada dos porcos, mas apenas pérolas mofando em círculos elitizados.
Vou contar pra você como descobri um par de nomes. Uma amiga minha, Bia. Muito escritora, muito sensível, muito arguta. Um dia me disse “você conhece Valter Hugo Mãe?” Disse que não. Ela me falou dele com uma admiração muito difícil de ver, daquele tipo legítimo, que você tem que correr pra buscar. Aquele sinal de coisa rara.
Depois que li alguns textos dele fiquei iluminado, entendi o que ela quis dizer. Mas também fiquei bem puto. Bem puto. Porque o que me separava de Valter por todos esses anos não era meu despreparo pra sua literatura, mas era a marginalização que essa coisa (não sei se chamo de sistema, de indústria cultural…) essa coisa me impôs.
Então, no tédio da quarentena, muitos meses depois do meu encontro com Valter Hugo Mãe, me deparei com um curso sobre escrita criativa, um curso que quase não assisti e lá ouvi um nome: Sérgio Sant’anna. Fui atrás pela maneira que a professora falou dele, tinha aquela pitada da fascinação de Bia.
E lá estava eu, na crônica chamada “O corpo” e mais uma vez me vi iluminado e revoltado. De novo passei anos sem Sérgio por perto. Ele escreve de um jeito fácil e forte e denso.
É engraçado porque as pessoas mais cotidianas que já conheci, essas pessoas adorariam essa literatura tanto quanto eu e talvez se sentissem tão putas como eu por passarem uma vida inteira longe de tanta coisa boa.
Eu só descobri dois nomes. Nem quero pensar como vou ficar quando descobrir um verdadeiro panteão contemporâneo que simplesmente me foi segregado. Tá sendo difícil dizer, mas a literatura é elitizada.

JL

1 2 3 5