Como foi ontem?

Como foi ontem?

 

Como foi ontem?
Bem, eu coloquei um par de sapatos, uma calça social preta (que mesmo do tamanho certo “precisa de um cinto se não, não é elegante”, é o que dizem) uma blusa lisa preta e um blazer escuro… talvez um azul escuro, ainda não sei. Ele muda de cor de acordo com a luz que bate nele.

Sim, fui a pé. Qual o problema? Prefiro caminhar, me faz pensar demais.
Por uma época apontavam isso como um defeito meu “você pensa demais, Jorge”, depois passei a ouvir como um elogio (o que irritou muita gente) e a procurar mais situações que me provocassem o “demais” no pensar.

No meio do caminho começou a garoar, apertei o passo. Nada contra a chuva, mas o preto depois que molha fica meio fedido.
E no dobrar de esquina lá estava o lugar. Um cubículo caro de vidro transparente, abarrotado de gente “importante”, de figurões do tipo novo-rico, que o dinheiro sobra onde falta classe. Mas o que esperar de um país de burgueses? Burgueses, é claro. O dinheiro compra tudo, até a desculpa por agir feito um porco envolto em linho.

Ok, ok. Vou dar uma impressão mais “pé no chão” do que vi ao longe. O lugar parecia quente… Desgraçadamente quente.
Na recepção a moça tinha uma lista grande de pessoas. Dei meu nome sem ela pedir. Voltou o olhar no papel e disse “ok”.

Dois passos a dentro e a primeira coisa que noto são os fotógrafos espremidos, usando lentes grandes, diafragmas arregalados e flashes sem difusores. (eles ainda não sabem, mas isso vai dar um brilho na testa suada do pessoal que você não faz ideia).

Depois tive que passar pela bateria de “chacoalhar a mão alheia e mostrar os dentes”. Raviólis, guardanapinhos, garçons bem vestidos, serpenteando por uma gente cheirando forte aos perfumes do momento. Eles servem um mar de fome. Fome contida é verdade, mas ainda fome.

Conversas de merda se alastram por todas as direções. Mulheres de índole duvidosa secando outros caras, ao lado de seus respectivos maridos distraídos com outras mulheres. Decotes… muitos decotes, muitas bolsas brilhantes, muitos cabelos penteados, muitos blazers, muitos paletós e esporte fino.

A sim, quase me esqueci das taças de champagne (Você sabia que “Champagne” é uma palavra patenteada pela frança e apenas os espumantes fabricados em Champagne podem ser chamados assim? E é o que estão servindo. Autênticos champagnes). Gente que normalmente não bebe está engolindo uma taça inteira porque é chique. E não existe um pobre aqui dentro (a não ser eu).

E no meio daquela bagunça lamentável, do burburinho incessante, noto que existe uma melodia além, lá no fundo. Lá depois de toda a gente e das mesas redondas de toalhas brancas. Lá tem uma moça em pé, de vestido azul claro, cantando “Insensatez” com voz de Nara Leão. Ninguém a nota, ela está só na multidão. Nem mesmo eu a notava até então.

Mas ela não está triste ou desapontada. Ela canta de olhos fechados. Ela canta pra si. Ela se basta e se envolve da arte que aquela gente pode comprar, mas não sabe sentir.
E eu a assisti existir, eu fugi dali. Ela tornou-se minha janela para o mundo que não encontro, um mundo sem tanta insensatez.
Ah, insensatez
JL