Irene – Parte 1

Irene - Parte 1

 

um silêncio… Normalmente é assim que se inicia um grande feito, ou qualquer coisa que se classifique como tal. O sol começa a tornar-se opaco, dando lugar as luzes elétricas. Lá fora tudo fica amarelo-pálido-alaranjado, aos sons de motores e burburinhos urbanos. O sol vai deslizando pela sala, chão de madeira ressecada, embotado delivros estirados ao chão. Livros grossos, livros fedendo a ao cheiro que as baratas devem ter. Livros cheios de C’s P’s e T’s extras do antigo português.

Não eram apenas livros estirados, eram mundos em silêncio a rodear o corpo de Irene… silêncios infinitos em folhas de papel.

Irene estirada ao chão, respirava pela boca, deixando escapava a agonia e ansiedade por entre seus dentes tortos. Irene observava o teto se despedir da luz solar.

Aquilo ali, o lugar onde se enfiou já faziam 10 anos, tinha jeito de depósito e gosto de fim. Até os móveis pareciam sugerir o término de alguma coisa. Ecoavam despedida, daquele tipo constrangedor que damos a um colega de trabalho antes de atravessarmos a rua, sem notar que o sinal se abriu. Então passamos mais um longo minuto ao lado daquela pessoa já cumprimentada de despedida. Fingimos por 1 minuto que ela não está mais lá, mesmo estando.

Agora imagine que móveis não podem atravessar a rua. Alguém precisava fazer isso por eles, alguém precisava fingir que eles não estão mais ali, enquanto os leva para onde deveriam ir. Irene não ia fazer isso. Irene era tímida.
O cágado chamado Frida, era o único intruso sempre presente. Chamava-se Frida porque Irene considerava uma opressão obrigada-la a ter um nome humano de homem. Devia ter a liberdade de escolher qualquer nome. Como Frida não sabia se expressar, Irene achou que lhe cabia bem o nome temporário “Frida” (pelo menos até a tartaruga finalmente reclamar um nome próprio).

Um dia Frida deu um grito enfático “ihhhhhhh!”, Irene correu acreditando que o animal tinha finalmente começado a dizer o próprio nome. E encontrou Frida tentando acasalar com o chinelo. Irene ficou o dia pensativa… Será que o alfabeto surgiu assim? Algum pervertido ficou anotando as vocalizações mais exóticas de um orgasmo? Já parou pra pensar que a ordem alfabética não tem sentido algum? Irene naquele dia parou para pensar nisso e concluiu que se o alfabeto ainda não existisse, a primeira letra catalogada por Inerene seria “i”… Será que Irene começa com um orgasmo de cágado? Por um instante muito breve, Irene sentiu-se ligeiramente sexy. Até perceber o quão estranho isso era.

Na casa de Irene, (apelidada friamente de galpão por ela mesma), era importante dar uns murros de vez em quando no piso. As baratas tinham mania de se aproximar de tudo que ficava muito tempo em silêncio. Irene estava emudecida desde as 3 da tarde, numa inquietude profunda.

Deu o primeiro murro no chão depois de meia hora após o entardecer (pode ouvir o arrastar das patinhas se afastando).

Irene já usava o mesmo vestido faziam semanas, ela só o usava quando ficava em casa. Na sua idade, já pelos trinta, não planejava ficar tanto tempo em casa. Era parte daquela regra velada do “não fica bem para uma mocinha de sua idade”. Irene de alguma forma concordava, não fazia parte do plano. Ao menos do plano que dependia só dela.

Mas Irene não gostava de se queixar, tão pouco meditar sobre os planos repentinos que ela era incluída e que atrapalhavam os seus.

O que importava naquele instante é que ela tinha consciência do vestido de bolinhas que vestia, um vestido branco de bolinhas pretas pequeninas. Irene pensava que existia uma espécie de temporada do vestido de bolinhas pretas. Era tudo uma questão de temporada pra ser considerada uma mulher elegante, ou uma idiota… Alguma tia velha havia dito que vestidos de bolinha tornaram-se a nova calça jeans – “combinam com tudo, não importa quando”.

Irene gostava do grande favor que os inventores da “universalidade jeans” fizeram pela vida de todos. Deveriam haver mais roupas de “universalidade jeans”. Elas evitam o receio de vestir algo que pareça fora de época.

Não que Irene se considerasse assim tão fútil, mas a agonia só ia embora quando sabia que atingiu um ponto minimamente neutro nas roupas; e as pessoas, pra variar, poderiam sentir interesse em desvendar alguma coisa além dos seus motivos na escolha dos panos.

Talvez começassem a pensar sobre Irene em si.

Não tinha jeito, tudo voltava pro mesmo ponto que começou às 3 da tarde. Quem afinal é “Irene em si”? Talvez por isso tanta gente se dedique tanto com as roupas, pra evitar que alguém descortine a fraude. De não se ter “em si”.

Parecia que todos sabiam algo de Irene. Todos que passavam 5 minutos com ela tinham alguma noção, ao menos o suficiente para tecer suposições. Menos Irene, “Irene em si”.

Levantou-se. Pode sentir seu cheiro de suor subir, um cheiro arrebatador e irritadiço. Era um cheiro seu, isso Irene tinha certeza. Ninguém cheirava como ela e ninguém conseguiria identificar essa nuança no ar e dizer “sentiram? Essa leve nota irritante? É de Irene”. Mas ela sabia ser dela, legitimamente dela.
Talvez quando você se sinta subitamente inquieto e irritadiço por ai, o cheiro de Irene tenha sutilmente o persuadido. Talvez o cheiro de Irene seja responsável por picos de TPM pela sua cidade. Uma espécie de feromônio que desperta o lado sombrio da feminilidade urbana. Irene ficou por um tempo de cócoras sentindo seu grande poder sobre a natureza. Será que alguém amaria esse cheiro um dia? Será que esse cheiro faria um coração disparar emotivamente? Irene tentou imaginar.

Entrou vagarosa no banheiro a procura de seu reflexo. Gostava de ver primeiro no piso branco, sua silhueta gigantesca e desbotada, um ar de gigante, um rosto sem detalhes. Dava espaço para ser o que achava melhor ser. Irene naquele instante gostaria de ser alguma coisa abstrata. Dizem que a alma é isso, não é?
Mas ao chegar no espelho, teve devolvida uma pessoa diferente do que se lembrava. Não se reconhecia na pele pálida e ferida de acne, naqueles pés de galinhas arranhados por um tempo que lhe furtou vida e lhe deixou rastros.
Arrancou sua universalidade jeans e deixou-se ver “Irene falsa magra”.

Irene era tudo aquilo que aparecia quando tirava a roupa e se via sendo nua, pés descalços em piso frio. Irene era aquele cheiro, aquele vestido atirado. Irene era sua própria ausência.

Era o indescritível, que se amealhava na atmosfera, no som ranzinza das válvulas do chuveiro se abrindo. A água fazia escorrer Irene. Irene se perdia antes de captar tudo que era
Irene era um entardecer tardio, numa cidade do interior. Irene era uma história sem desfecho.

JL