Irene – Parte 2

Irene - Parte 2

 

Irene pendia monótona, confortada na tempestade fumegante. Esquecia-se do átimo estúpido em que perdeu a caçada de si. Acompanhava a corrida das gotículas nas paredes, seus caminhos tortos, suas interrupções frequentes (não sabia bem se reparava as gotas ou a própria vida).

O boxe alagava, os pés afogavam-se na água ensaboada, Irene movia esporadicamente aspontas dos dedos dos pés que emergiam. Imaginando-os aflitos, tomando fôlego, aguentando como podiam a tormenta que Irene impunha sob suas vidas. Irene, a deusa que castigava o mundo das névoas mornas com sua apatia, lançando a dúvida consternadora em suas criaturas sobre o real propósito da existência.

Mal sabiam eles…O único propósito de tudo, de cada vida complexa que gerava-se naquele universo, era o despropósito de Irene. Nem os ateus de seu universo eram tão descrentes do poder criador de Irene quanto Irene. Existiam vidas que louvavam a finitude de Irene, simplesmente gratas por existir, simplesmente confusas por sofrerem sem razão, apesar de tantos louvores e amores incondicionais. Ergueram igrejas flutuantes, inventaram orações, messias em seu nome nasceram e foram mortos. Contemplavam a criação, destruíram fragmentos insignificantes delas.

Irene abrigava-se numa contemplação sonâmbula da calma, recostando-se na cerâmica fria. Dormitante, abalada por ruídos brancos… O universo cedeu ao sono.

Despertou depois de eras.Muitos esperaram por Irene, que só acordou depois do fim.

Desfez o rangido das válvulas, encerrou a tormenta, derramou shampoo na concha da mão, coçou os cabelos nervosamente, avolumou espuma, enxaguou. Cheirava a tutifruti. Esqueceu a toalha na janela do galpão.  Sacolejou os braços, as pernas, espremeu os cabelos, passou as mãos no rosto, tomou coragem, sentiu com antecedência o frio.

Na penumbra das 20 horas, a nudez encharcada de Irene corria através do galpão, seguindo o feixe de luz urbana e invasiva. Procurava, da maneira que podia, segurar o próprio calor. As prateleiras de ferro passavam, à esquerda, à direita. Pareciam conversar, pareciam sérias, aceitavam bem demais a noite de terça-feira. Frida estava inerte num canto próximo, talvez criando o universo em que Irene corria pelada por um galpão. Tomou a toalha seca do dia quente que se foi, ainda levemente morna, ainda cheirando a sol.

Enxugou-se, fechou a janela, olhou a cidade num pequeno pedaço possível através do vidro impreciso. Movia a cabeça, fazendo as ondulações do material provocar uma dança no cenário inerte, ausente. Aquelas lixeiras, aquelas casas acesas, muros idosos, aqueles telhados de cerâmica… E aquele incômodo compulsivo, pinicante, as textura mínimas e variadas do galpão em seus pés. Faziam parte do cenário sensitivo. Parecia olhar pelo vidro irregular tudo que pisava sem querer, tudo que incomodava sua pressa, tudo de insignificante que é salpicado pelo chão.

Voltou ao banheiro, escondeu-se da nudez, camuflada de bolinhas em pano branco. Ligou a única luz do galpão, uma lâmpada incandescente, baixa demais, projetando luz cremosa, dourada, que deitava em seu colchão antes dela.

Desenrolava seus lençóis amarfanhados, deitava de barriga para cima e lá esperava o amanhecer. Sono era coisa rara, dormia em pedaços. Conversava qualquer coisa com Frida.

Haviam coisas ao seu redor que conseguiam dormir, haviam livros em prateleiras; velhos e organizados. Irene mal sabia como apareciam lá. Era como se eles se apegassem a ela, descobrissem seu endereço, invadissem seu galpão. Irene não mostrava resistência. Irene era pacífica.

O amanhecer demorava cerca de uma hora entre as 20:30 e as 5:30. Isso fazia Irene suspeitar que dormia. Talvez  sonhasse olhar para um teto alto, um teto exatamente igual a de seu galpão, e acordasse olhando o teto alto, exatamente como em seu sonho, até a luz solar invadir azulada aquela vastidão mal aproveitada.

Acordava com dor de fome e dentes mais gastos, sentava-se no colchão, respirava partículas de poeira ao sol. A cidade sempre amanhecia quente.

O calor construiu algo terrível em Irene, transformou-a numa espécie peculiar de galo; os galos comuns gritam ao sol, Irene preferia detestá-lo em silêncio.

Cambaleava até a porta de saída do galpão, onde a geladeira murmurava preguiçosa logo ao lado. Geladeira pequena, das brancas, pouco eficiente.

A porta abriu-se estalando um beijo emborrachado, jogando frescor convidativo. Irene ignorava, aprendeu a economizar. Escolheu uma pera.

Irene comia peras de manhã, era uma das poucas coisas que suportava no estômago tão cedo. Mas havia um segredo, um critério oculto por trás da predileção, algo que se escondia até mesmo dela.

Irene sempre esperava o dia da feira para comprar peras à três quarteirões do galpão. Um impulso tão forte, tão profundo, que nunca notou o mercado logo ali; que vendia peras maiores, mais baratas, mais bonitas.

Irene detestava os sons da feira, dos feirantes, o cheiro forte de frango cru aguardando em gelo, o aroma petulante dos temperos a céu aberto, os peixes misteriosamente mortos. A verdade é que Irene não ia à feira para comprar peras. Ela ia para salvá-las.

Irene as movia de lugar, escolhia a dedo. Não pela madurez, não pelo tamanho. Irene escolhia pelas marcas.

As dores riscadas de marrom, os hematomas inevitáveis nas cascas, era o arauto de suas vidas singulares.

Irene, de alguma forma, suspeitava que o genuíno habitava onde as dores deixaram marcas. Peras imaculadas, sem dores sofridas, são apenas projeções tristes de um ideal de pera. Mas as peras marcadas, sacolejadas, arranhadas, essas peras têm o ingrediente. Possuem histórias que as tornaram incomuns, como se gritassem um nome próprio, inconfundível.

Aquela pele amarela-fina delas… Facilmente transponível, facilmente destroçável, num lugar embrutecido, inóspito. Na feira Irene contemplava, com a parte mais inconsciente de sua alma, o milagre da pera.

E no galpão passava minutos observando cada arranhão de pássaro, cada hematoma, cada pedaço arrancado, cada história contada. E só depois de não haver como adiar a fome, Irene as comia. Nesse momento havia o desfecho da pera; por mais diferentemente que as dores as talhassem, elas nunca conseguiam se afastar de seu sabor inerente. Eram todas um ideal triste de pera.

JL