Comprei o livro errado

Por um acaso me deparei com um livro que relatava um evento real de um passado distante. Com um desejo quase infantil de querer me transportar ao passadoo comprei naquela noite, numa livraria próxima.

Rasguei o plástico, e tão rápido quanto o rasguei, já lia com pressa. Mal via a hora de finalmente enxergar uma realidade pelas lentes de um ser humano do passado e sentir aquela sensação mesquinha de ser uma pessoa do futuro, detentor de maior civilidade e sensatez.

O livro começava com um alerta:

“O bem-estar social, que tem se tornado cada vez mais natural para muitos de nós, encobre morte, tortura e terror; e induz a não acreditarmos no que, na verdade, sabemos”.

Não foi a melhor introdução para uma viagem no tempo, mas ainda estava otimista.

Depois de algumas páginas:

Uma menina questiona o pai de como as coisas chegaram aquele ponto de horror e o pai diz: “Quando o homem é privado de suas necessidades mais básicas e só enxerga o futuro como um muro cinza e intransponível, ele se deixa levar por promessas e propostas sedutoras, sem se perguntar quem as faz.”

A menina retruca e diz que quem as fez estava cumprindo suas promessas. E o pai com paciência diz: “Isso é verdade. Só não pergunte como! […] Não somos gado, que fica satisfeito com um comedouro cheio. Só o bem-estar material nunca será suficiente para nos fazer felizes. Afinal de contas, somos pessoas que pensam livremente e temos nossas próprias crenças. Um governo que interfere nisso não tem o mínimo respeito pelo ser humano. E isso é a primeira coisa que devemos exigir deles.”

Nesse instante parei de ler, incomodado. Não estava conseguindo me transportar no tempo, voltei algumas páginas para checar e encontrei fotografias em preto e branco, datas antigas. Não fazia sentido. Mas me convenci novamente de que era um livro do passado para voltar à leitura.

“(o trabalho) teria sido suportável, caso suas convicções não a tivessem levado a uma profunda e permanente postura defensiva. Não seria uma falta de caráter imperdoável mexer um só dedo por um Estado que tinha como base a mentira, o ódio e a opressão? ‘Quero que vocês caminhem pela vida com liberdade e retidão’, dissera o pai. Como isso era difícil[…] Então ela se mantinha em segundo plano e tentava fingir que não estava ali (naquele trabalho). Os outros que pensassem dela o que quisessem.”

O que estava acontecendo comigo? Pela primeira vez eu não conseguia me transportar para o tempo longínquo que o livro propunha.

“ O que estamos esperando? (…) que os povos apontem para nós e digam que suportamos um governo assim sem resistência?”
“…tomamos conhecimento das ‘correções’ dos fundamentos da fé cristã que estavam sendo preparados pelo Estado… Eram intervenções medonhas e blasfemas, preparadas pelas costas do povo”

Bem, talvez eu devesse parar um pouco. Talvez colocar uma trilha sonora de época, rever as fotos. Me concentrar mais…

“O Estado jamais é um fim em si mesmo[…] Se uma Constituição impede o desenvolvimento de todas as potencialidades do homem, se impede o progresso do Espírito, então ela é reprovável e perniciosa…”.

Nessa altura comecei a me perguntar se o problema era realmente eu. Não havia nada de passado, nada de longíncuo naquelas folhas

“…precisamos abrir os olhos da população que ainda não percebeu as intenções sinistras do nosso regime e também despertar nela a decisão a favor da resistência e da defesa honesta”

Saltava as folhas e encontrava ainda mais confirmações que não era um livro sobre o passado:

“Os jornais eram como campos minados. Não fazia bem a ninguém passar por eles.”

Pensei que tinha comprado um livro sobre o relato da resistência, sobre tempos distantes, sobre o nazismo. Mas acabei levando pra casa um livro sobre nosso Estado, sobre nosso dia-a-dia.
Recomendo a leitura de “A Rosa Branca”, um relato real escrito por Inge Scholl. Irmã de integrantes do movimento rebelde contra o nazismo de nome homônimo ao título.
Mas não se iluda! Apesar da sensação de passado europeu inspirado por fotos em preto e branco, é um livro que fala de nosso cotidiano bem brasileiro (e fascista).

O livro grita uma solução: Não se conformem! Resistam! Nem que apenas a produção de panfletos seja a única coisa a seu alcance. Todos devemos lutar. Mesmo que nos vejamos numa luta quase individual, arremessando panfletos com palavras de despertar.

JL