Quando me tornei ateu (um texto para não ser lido)

nietszche

Vim de um lar cristão, daquele tipo com reuniões na mesa da cozinha pra ler passagens do evangelho e conversar sobre os ensinamentos. Eram raras as vezes que eu perdia um “culto” doméstico.
Meu pai vem de uma família portuguesa e espanhola tradicionalmente católica e é católico. Minha mãe, de uma família tradicionalmente nordestina (com as misturas típicas do paganismo popular com a religião católica) e tornou-se espírita ainda na adolescência.
Tive contato com esses dois lados do cristianismo (o lado mais dogmático e rigorosodo catolicismo e o lado mais “moderno” e “questionador” do espiritismo – se é que posso me expressar dessa forma).
Apesar de cristãos, meus pais não nos proibiam de procurarmos nossas verdades, apesar das insinuações de que, provavelmente, acabaríamos por descobrir que a filosofia cristã era a mais “correta” e “coerente”.
E foi basicamente depois de uma grande decepção com as pessoas que aconteceu uma grande aproximação da religião seguida da decisão definitiva de romper com ela.
Comecei com trabalhos voluntários na cozinha e na enfermaria de uma casa de caridade espírita em conjunto com o retorno aos estudos teóricos do cristianismo. E como sempre fiz com tudo que estudava verdadeiramente, dissequei o livro com anotações, apontamentos. Não como um cético, mas como alguém que sabe que a resposta está ali e que é só um questão de atenção e afinco para achá-la.
O tempo passava e eu não encontrava ali um alento verdadeiro para os meus problemas. Especificamente a questão da limitação humana. E veja que não encontrar não significa não ter visto algumas explicações, mas que elas não eram críveis. Eu queria uma resposta em seu sentido mais verdadeiro e lúcido. Cada vez mais os sermões de Padre Antônio Vieira pareciam se repetir como um eco em qualquer material cristão que eu lesse: pareciam me soar como feitas para domesticar os homens oprimidos e entregá-los nas mãos de seus opressores. Fui então para o budismo e mais uma vez parecia uma ferramenta política para distanciar o homem da sociedade a qual faz parte e sofre diretamente de suas ações.
Enquanto essas coisas se davam numa vertente da minha vida, em outras eu começava a conviver com os discursos dos tais ateus. De início eu achava interessante como eles escancaravam, sem rodeios, as contradições todas do cristianismo e de tantas outras religiões. E aquilo tudo fazia muito sentido, toda aquela hipocrisia sendo desnuda sem pudor, sem meias palavras ou delicadezas. Eu achava muito corajoso por parte dessas pessoas.
E, assim como todo cristão, eu tinha medo de me desapegar do suposto deus. De olhar pros céus e encarar o fato de que não havia nenhum cara barbudo, perverso, mas ao mesmo tempo totalmente bondoso. Eu pensava “mas se eu desacreditar, no que vou me apegar nos momentos mais sombrios da minha vida?”
E quando esses momentos batiam na minha porta eu fazia uma simulação mental: como seria se não houvesse mais um grande pai olhando por mim, como eu sobreviveria àquilo? Parecia insano, improvável, muito mais doloroso.
O tempo passava e parecia cada vez mais incoerente me apegar a uma religião, todas elas soavam claramente contraditórias e intelectualmente questionáveis. Eu queria fazer o salto, anunciar para mim mesmo e para os céus que eu desacreditava absolutamente naquilo.
Então um dia saltei. Simplesmente joguei tudo aquilo fora e foi a pior coisa que já fiz.
Só muito tempo depois entendi que, naquela época, eu era uma pessoa com os preconceitos de um religioso tentando me livrar da religião. O preconceito de que “nada existe sem um deus” estava tão enraizado que eu achava que deixar se ser cristão era simplesmente me jogar no vazio e encarar a vida como algo cru e sem profundidade existencial. Já se imaginou tentando adotar uma vida assim?
Retrocedi assustado, mas profundamente contrariado. Como aquela sensação de tentar sair do mercadinho no meio da chuva e ter que voltar encharcado.
Mas a decisão de saída já havia sido tomada. Esse processo foi acontecendo lentamente a medida que eu construía algo sadio do lado de fora da religião. Eu desconstruia naturalmente uma casa enquanto erguia outra. A filosofia foi o material central pra que eu construísse algo sólido. E aí mora a parte mais irônica e inquietante.
O irônico foi que logo Platão e Aristóteles quem me salvaram das amarras conceituais do cristianismo. Provavelmente, se você nunca estudou os dois, você não entendeu porque é irônico.
Explicando brevemente, antes dos monges católicos descobrirem os escritos de Platão e Aristóteles, a religião cristã era um tanto simplória. Foi então que os monges católicos covardemente roubaram algumas lógicas platônicas e aristotélicas enquanto suprimiram outras, para dar uma roupagem mais madura e intelectual para sua doutrina. É engraçado, pois se você ler integralmente as obras de Platão e Aristóteles lá está a cura contra a religião. E, como toda a cura, você também pode transformá-la em veneno, se tirar alguns ingredientes e exagerar na quantidade de outros.
A vida sadia fora da religião cada vez mais se completava e foi Descartes que trouxe ainda mais estrutura com seu Discurso do Método, uma obra fascinante pela engenhosidade que contém para contornar a igreja da época, não apenas contornar, mas para escrever um baita manifesto contra suas contradições intelectuais.
E, quando eu estava com nervos mais resistentes, Nietzsche veio com alguns móveis para uma morada e um jardim… quem diria… o amargo Nietszche sendo o construtor de jardins. Mas foi! E com toda a delicadeza e bondade do mundo.
Mas restava algo ainda significativo dentro de mim que me atrasava nessa ruptura. Algum preconceito típico de um religioso se escondia, algo oculto até mesmo de mim. Foi George Orwell em “1984” que escancarou-o para mim: Achar que o ser humano tinha algo de espcial perante a existência (mesmo que da mínima bactéria).
Ele mostrou a fragilidade desse animal que somos. “Até que ponto nossas certezas não vieram de sucessivas torturas?” George Orwell quase sussurrava essa pergunta a cada página, enquanto mostrava a crueza humana e sua fragilidade. Em como os líderes da humanidade descobriram a própria irrelevância para ser capaz de dominar os outros.
É engraçado, mas o processo de tornar-se ateu não é algo da noite pro dia. Honestamente, para mim, esse dia ainda está em seu entardecer.Pois tornar-se ateu não é simplesmente desacreditar numa divindade, mas encontrar e desconstruir todas as contradições que se entranham em você por causa da sua antiga crença incutida em você desde criança.
E essa tarde cai enquanto vejo a religião ficando distante em minha vida. Tem um tom sereno e definitivo, como um dente de leite que amolece pacificamente, por já ser hora de dar lugar a algo mais permanente.
E quanto aos dias mais sombrios?
Eles ainda existem, mas já não servem como espantalho para impedir meu avanço a um caminho mais coerente.
JL