Sofá de couro preto ao sol

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Entrevista às quatorze horas… Bom começar a se arrumar duas horas antes, para estar no ponto uma hora antes.
Não importa o quão capacitado ou acima da capacidade para o cargo se esteja, você vai precisar vestir uma roupa engomadinha, pelo bem da sua autoconfiança.
Porque todos nós sabemos veladamente que um funcionário do RH nos aguarda. Alguém que provavelmente escolheu a área pelo sadismo de ver toda a insegurança e pavor de um

candidato.
Então você passa, engoma e veste a cumplicidade daquela hipocrisia, escova bem os dentes, faz a barba… E enfim se traveste na oferenda que alimentará tudo aquilo.

Você não almoça, tem medo de se atrasar, pois se deixou atrasar de propósito, porque não vê sentido em nada daquilo, na maneira das pessoas, no jeito que elas repetem brutamente que o mundo gira, que o mundo deve girar.

Você olha a comida e corre para o ponto, com Rodrigo Amarante tocando em seus ouvidos. Tomando cuidado para não ser rápido demais, se concentrado pra não suar. Porque, apesar de ser uma entrevista para um hotel perto do mar, numa cidade tropical, onde o calor é digno de biquíni e sunga, você deve ir de social (calça, cinto, sapato fechado, meia até a canela, blusa de manga comprida).

Você pega o ônibus errado. Tem que descer 5 quadras antes, correr. Correr sem suar, correr depressa, mas não o suficiente para evitar o atraso. Você chega atrasado. Mas todos ainda estão lá, esperando a entrevista começar, o pessoal do RH ainda não chamou ninguém, mas apesar disso uma das moças do RH “brinca” com seu atraso. Ela ri, se deleita com seu medo e entra em sua sala triste.

Cinco candidatos chamados pra uma vaga. Uma vaga desanimadora, simples, tosca, que rouba a vida para dar dinheiro da sobrevida. Os candidatos estão bem vestidos, todos sentados calmamente, com seus celulares hipnóticos e seus sapatos bem engraxados. O sofá é de couro preto, uma grande janela ao lado joga sol quente em todos. Me lembra uma grande lupa queimando formigas submetidas ao sadismo de uma criança.

Sento entre eles e comento do calor. Todos sorriem num alívio pungente e concordam que está muito calor, parecendo poder respirar enfim. Finalmente alguém admitiu a fraqueza primeiro, agora todos podem admitir sua humanidade, enxugar o suor, se abanar… todos recepcionam bem o mais fraco, o mais fraco não é ameaçador.

Vou ao banheiro, lavo meu rosto, me olho no espelho e me acalmo ao ver que nada estragou o agrado aos analistas do RH. Reviso em minha mente as respostas hipócritas para futuras perguntas hipócritas. Volto e prefiro me manter em pé, perto da pilastra que protege com uma sombra suportável aquele hall de espera.

Uma das analistas passa e me flagra de pé. Ela pensa que pode me decifrar através de minha postura: “Você deve ser impaciente, né?” Por que? “Está aí, de pé, não gosta de esperar?” Não me incomodo em esperar, está muito calor, aqui faz sombra.

Ela então continua me olhando e volta pra sua sala triste, talvez com todo meu perfil traçado. Quantas coisas não devo ter deixado escapar com aqueles braços cruzados?

O primeiro candidato volta depois de dez minutos, se despede desejando boa sorte. Todos sorriem de volta e agradecem. O próximo é chamado. “Quem é o próximo?”. Um menino de cabelos cacheados diz “Eu! Eu sou o próximo”. O homem negro de ar simpático e gentil diz “É ele! Ele é o próximo. Chegou antes de mim” A moça do RH deleita-se com a cena. O menino cacheado e o senhor negro e simpático. Ela vê um contraste que pode brincar sem ser acusada: a idade. O homem negro é mais velho que o menino cacheado. “Mas você não vai dar a vez para os mais velhos?” A analista termina a frase num riso sinistro. Todos sentimos muito. Todos baixamos a cabeça, todos sorrimos constrangidos. “Não vai deixar esse senhor passar a sua frente, menino?”. Mais um riso, dessa vez mais curto e finalmente ela sente que atingiu o ponto do constrangimento certo e então termina com “era só brincadeira, Sérgio”.

Sérgio, o homem negro de jeito simpático ri, como quem chora. “É só pra descontrair” A moça do RH diz enquanto leva o menino cacheado para a sala de entrevista e o homem negro ao banheiro. O menino ela levou pela mão. O homem, pelo medo.

Sérgio volta com o rosto lavado e as mãos menos trêmulas. E eu falo num tom calmo “Os analistas de RH são sádicos, não são?” Ele me olha espantado, como quem não acredita no que ouviu. “Parece que eles se alimentam de medo, não parece?”. O homem não sabia o que dizer. Mas seu olhar falou comigo. Ele me responde algo neutro, educado, como quem diz “eu concordo, mas não posso dizer isso agora, me desculpe, preciso desse emprego”. E eu sorrio como quem entende, como quem realmente entende.

Os dez minutos do primeiro candidato passaram, mas o segundo ainda permanecia… vinte, trinta minutos… e o segundo candidato ainda permanecia. Um assunto começou entre nós três. E começamos a nos descobrir quase em querer.

O homem negro era um experiente recepcionista de cruzeiros. Viajou o mundo suportando opressões medonhas e trabalhando dedicadamente, sem se queixar, fazendo o melhor, economizando dinheiro ao máximo. Três anos no mar… isso é o equivalente a cinquenta em terra. As condições de trabalho que as empresas europeias submetem trabalhadores estrangeiros é desumana. São 12 horas ou mais de trabalho ao dia. O homem explicava “não podemos reclamar… já sabemos que é assim. Estamos lá pelo dinheiro. Pra juntar o que for possível e sumir de lá”. Sérgio havia sumido de lá.

Ele gostava de usar a expressão “sumir”, pra parecer mais corajoso, revolucionário. Mas a verdade é que cumpriu exemplarmente seu contrato e saiu ao final do último. “Sumiu” e apareceu naquele hotel, assim como eu, num dia qualquer. Levando um currículo impresso e um sorriso simpático. Ele sabia falar inglês muito bem. Era o único negro entre os candidatos.

Samanta era a terceira pessoa do hall quente. Ela também trabalhou por anos embarcada, como recepcionista. Era uma mulher corpulenta, mas bonita, jovem. Tinha uma filha pequena, Rita.

Rita que eu desvendava através do rosto de Samanta. Deveria ser uma menina alegre, bonitinha, faceira.

Samanta contou das amizades inesquecíveis que teve com os filipinos nos navios que trabalhou. Admirava a amabilidade deles contrastando com a firmeza do trabalho incansável que desempenhavam. Nutrindo-se basicamente de arroz, muito arroz. Dizia que os brasileiros eram muito críticos, exigiam direitos no trabalho. E que os filipinos trabalhavam sem pedir mais que arroz e alguns dólares ao mês. “… eles são magros, a gente se surpreende com a força deles”

Samanta sabia falar inglês, inglês filipino, com um sotaque de trabalho duro e arroz. Mas tinha medo de admitir, por isso deixava no currículo que seu inglês era “básico”. Ela morava na cidade vizinha. Tinha se chacoalhado num ônibus por bem mais tempo que eu, e um pouco menos que Sérgio.

Eram dezesseis horas e vinte minutos. Nenhum de nós havia almoçado, estávamos ansiosos, com medo, com fome. Sentados, como que de favor, num sofá de couro preto ao sol. Samanta além da fome, do medo e da ansiedade, estava preocupada com a filha, que ficou com uma conhecida, que precisava ser confiável… precisava ser… precisava ser…

Houve um silêncio no hall, todos voltaram ao transe da preocupação, já haviam desistido de fingir que faziam algo no celular e apenas olhavam para o chão, tentando parecer calmos, centrados, adequados para o cargo.

Todos nós fomos chamados ali para uma entrevista as quatorze horas e estávamos vendo as dezessete chegando logo. O medo da brincadeira dos meus dez minutos de atraso ainda me cutucava o peito e lá no fundo de mim uma outra voz me perguntava: “afinal, quem está atrasado?”. E eu sorria pra essa voz, como Sérgio sorriu para minha.

Quatro de nós voltaria para casa com fome, sem um dia útil e sem emprego. Receberiam um sorriso profissional de RH e um “boa sorte” com “não tem de quê, não precisa pedir desculpas por usar tanto tempo nosso sofá”.

Olhei para o teto de gesso impecável, de luzes pontuais, brancas, num design bem escolhido. Depois ousei olhar para além do vidro-lupa que nos escaldava. Lá fora, logo ali, havia um céu azul perfeito, um mar brilhante e montanhas esverdeadas acolhendo barquinhos minúsculos ao longe. Era um dia lindo, numa cidade tropical… E eu disse: Olha só que dia lindo lá fora!

Ninguém conseguiu olhar, Sérgio fez um meneio com a cabeça de “sim, sim…”, num sorriso cansado de quem não prestou atenção, sem tirar o olhar fixo do chão polido. Samanta não se moveu, apenas continuou refletindo, como se tivesse ouvido uma voz distante na televisão, como se alcançasse a pequena Rita nos braços.

O tempo passou, Sérgio foi chamado. O tempo passou, as dezessete já anunciava as 18. “Você tem fome, Samanta?” perguntei, Samanta disse que sim. “Vou comprar algo pra você comer”. Samanta disse que não, que logo poderiam me chamar.

“Jorge, vamos?” Paola chamou-me, ela faria a entrevista. Me despedi de Samanta pensando em sua filha e em sua fome.

Entrei numa salinha, salinha um pouco menos iluminada, mesas engraçadas, cobertas com pano elástico.

Paola seria a intérprete mediúnica de um par de papéis na mesa. Pegou uma caneta com uma mão, segurou a cabeça com a outra, pendendo em cima do papel, começou a falar comigo. Não olhava em meus olhos. Porque não era Paola que falava comigo, era o papel.

O papel me perguntava sobre meu comportamento em equipe, sobre minhas ambições, sobre minha subordinação e paciência. Sobre meus defeitos e qualidades. Entre tantas, uma delas me agarrou a alma, talvez para sempre. “Como você espera que seu chefe te veja?” Como um ser humano, eu disse. Paola anotava. Anotava para o papel entender minha resposta. Um papel entenderia de humanidade?

“Como é sua relação com seu chefe? Como você o vê?” Como outro ser humano, eu disse. E Paola riscava para o papel minhas palavras.

Paola finalmente tirou os olhos do papel, colocou a caneta ao lado, voltou-se para mim. Meu peito disparou. Finalmente Paola. Finalmente a possessão terminou.

Ela explicou sua visão do perfil de funcionário que ela foi e que estava exigindo: Pontual, competente, que nunca fica doente, que faz o serviço dos outros sem cobrar hora extra ou benefícios. Que acredita que o esforço o levará a promoções futuras, mas que não peça por isso.

Perguntou mais uma vez se eu realmente não tinha nenhum problema de saúde. Eu disse que não, mais uma vez. Ela explicou que já contratou um funcionário que ficou doente logo na primeira semana e que não entendia como alguém podia fazer algo tão terrível.

Então entendi que Paola não tinha cessado a prática mediúnica. Ela havia encorporado o papel. O papel falava por Paola e via o mundo através de seus olhos de origami.

Talvez Paola estivesse presa no papel, e o papel liberto em Paola. Talvez…

A entrevista terminou, agradeci por espasmo e saí.

De volta ao hall para pegar o elevador revi Samanta, que estava só… Lhe sorri, acenei e desejei boa sorte, do fundo de minha alma a desejei sorte. Uma sorte profunda, tocando a essência da deusa.

Estava cansado, minhas costas pesavam, meu estômago doía. Tentei sorrir, caminhei até o ponto, meus pés doíam. Chegando ao ponto, literalmente em frente ao mar, por um acaso olhei para o céu. E havia um laranja vibrante, fosforescente, surreal. O sol não estava ali, mas aquele espectro sobrenatural e vivo pulsava. O tom que Dali nunca conseguiu alcançar em suas paletas. Era lindo, olhei para baixo, como quem procura um cúmplice e havia uma multidão de bípedes arrasados, olhando para o chão, esperando para voltar pra casa. Ninguém olhava o céu, ninguém olhava o mar. Ninguém via nada.

JL