Setenta cartas

cartas_enviadas

Eu realmente estava constrangido, porque não era algo que seria rápido. Meu plano era esperar que só estivesse eu e o homem grisalho do caixa…
Havia uma pequena fila, talvez demorasse uns 5 minutos.
Contas… todos ali estavam para pagar contas ou depositar dinheiro para alguém. Quem hoje em dia envia cartas? Aquele homem do caixa talvez nem se lembre a última vez que alguém enviou uma carta sequer.
Finalmente todos saíram e pude me aproximar com minhas duas malas de viagem. – Bom dia! Qual foi o número máximo de cartas que alguém já te pediu para despachar de uma só vez?
O homem me olhou com uma cara estranha. E disse – Não sei… – Deve ser assim que as pessoas olham pra um maluco, eu pensei.
– Bom… É que eu tenho 70 cartas pra enviar…
Ele realmente tentou fazer uma cara cotidiana, natural. Mas ficou um pouco tenso – Elas estão com você? – Ele usava a pergunta como uma muleta pra recuperar a postura.
Sim. Nessas duas malas aqui. Posso ir tirando?
Eu vou precisar de ajuda aqui! – O homem coçou a cabeça e gritou pra uma salinha escondida perto do balcão.
E saiu um senhor com um ar entediado. Num andar meio preguiçoso. Eu conhecia de vista… quase nunca estava no balcão.
– Eu vou precisar de bastante selo! São 70 cartas!
O senhor não esboçou espanto. Talvez naqueles longos anos de correios ele já tenha visto algo do tipo.
O homem grisalho parecia ser tomado aos poucos por uma ansiedade de estagiário. Parecia que cada vez mais ele ia tomando consciência do que estava acontecendo ali. Era evidente ser a primeira vez que algo assim acontecia para ele. Ao menos naquelas proporções, naquela cidadezinha do interior.
Ele parecia muito atento e desconcertado. Lidar com cartas é muito mais perigoso do que parece, eu bem o sei… Se ele estava preocupado em errar algum detalhe para enviá-las, eu vivi um sofrimento amplificado ao ter que preenchê-las uma a uma, tentando desviar de cada descuido sutil que parecia se multiplicar a medida que eu superava o anterior.
Algumas pessoas iam chegando com boletos nas mãos, carnês do INSS, contas pra fazer depósitos. E aqueles dois senhores trabalhavam atentos na pesagem de cartas e no destaque de selos. A fila parecia cada vez mais uma platéia sendo testemunha da ressurreição dos tempos áureos dos correios.
Agora aqueles carnês e contas pareciam tão estranhos ao local. Parecia que aquele postinho dizia através daquela valsa feita por dois senhores e setenta cartas: É isso que verdadeiramente sou!
Eu tentava me camuflar entre as pessoas, me sentei, escondi as malas num cantinho, tentava fazer uma cara de entediado, parecer guardar num dos bolsos um boleto qualquer, um carnê… uma conta.
Não vai ter selo suficiente. – O homem grisalho olhava pra tela do computador dando batuquinhos mecanicos no teclado.
Mas e agora? – Perguntei, já resignado.
Calma, eu vou dar um jeito…
Vai chegar mais hoje?
Não. Eu vou imprimir mais!
E então descobri que os postos dos correios podem imprimir seus selos da própria impressora. Na minha cabeça os selos vinham de uma espécie de “banco central” dos selos… em lotes, com toda a segurança possível para não haver fraudes… Mas hoje… quem se importaria com os selos de uma agência dos correios?
E folhas e folhas de selos vinham aparecendo com aquela tarja “CMYK” industrial para checagem de cores. Descobri que cada selo tem um valor e dependendo do peso da carta, ela pode receber mais de um selo.
As cartas se amontoaram ao lado da balança, os selos foram separados, a conta foi fechada e o moço anunciou o valor pra mim.
Paguei em dinheiro, mas poderia ter sido no débito, no crédito, na bandeira que fosse, o homem grisalho me disse num tom simpático e contemporâneo.
Saí de lá com duas malas vazias, e o coração apertado. Fiquei pensando que talvez eu tenha entendido o desânimo cotidiano na postura daquele senhor… Talvez não fosse a idade, nem o cansaço. Mas o desânimo natural de um homem que já contemplou todo o verdadeiro propósito dos correios e agora vive para receber pagamentos e encomendas da internet.
Eu pude apenas contemplar uma parte do processo, mas acredito que cada assinante do revoltirinhas será testemunha da melhor parte de todas: Um carteiro gritando pelo seu primeiro nome, com uma carta escrita a mão, vinda de longe.
JL