Aos arriadores de calças (uma breve história sobre as minhas histórias)

arriadores

A professora nos deu uma folha pautada, disse pra tomarmos cuidado para que não amassasse. O tema da redação era livre e, eu não sabia ainda, mas algo estava prestes a ser tirado de mim por quase dez anos.

Eu queria escrever aquela história. As ideias me “coisavam” a alma, me deixavam agitado. Fiquei inseguro de usar a folha pautada logo de início. Escrevi em outra, numa qualquer, que não me julgaria caso eu a riscasse, amassasse, recomeçasse subitamente.

E lá, começaram a rolar vidas possíveis, um universo paralelo, guerreiros corajosos, embates febris e um vencedor. Lá haviam dragões, magos, senhores feudais justos, um amor verdadeiro. Lá havia toda a imaginação livre, verdadeiramente livre, de um menino que sempre viveu mais em sua cabeça do que no mundo real, que sempre se preparou sem saber pra fazer aquela história.

Agora era hora de transcrever com cuidado, cuidado para não precisar riscar desnecessariamente a folha preciosa da professora. Evitava, com o coração apertado, minhas ilustrações. Até mesmo meu dragão preferido, lilás e verde limão! Guardei o rascunho para mim.

Pensei em novos momentos, uma reviravolta mais intensa, mas era tarde demais… A folha não poderia ser rasurada, a história não poderia mais ser recomeçada, não naquela folha pautada…

Os dias passaram e finalmente minha redação foi devolvida pela professora. A folha pautada, que tomei tanto cuidado de não macular, que até mesmo estava sem meu dragão preferido, agora estava cheia de riscos sangrentos, enormes, fora da linha, escritos em diagonais severas.

Cedilhas, duplos esses, indicações de parágrafos que não foram executados, riscos em palavras inteiras. E, por fim, uma nota 3,0 seguida da assinatura da professora com uma carinha triste.

A menina dedicada do meu lado; que escreveu que tomou sorvete no fim de semana e que foi de morango, sua folha não estava sangrando, cada cedilha em seu lugar, cada duplo esse, cada parágrafo quebrado no momento certo. Sua folha cândida foi adornada por um dez e uma carinha feliz escrita com tinta de glitter azul.

Esses eventos se repetiram pela primeira série em diante e passei quase uma década da minha vida sem tocar, sem sequer olhar com ternura para uma folha em branco. Sem cogitar uma narrativa, mesmo que mental.

Acabei acreditando que aquelas notas estavam diretamente ligadas à falta de qualidade no conteúdo. Eu me sentia estúpido, olhando com vergonha para meus colegas “nota dez”, como a esconder o rosto ante figuras de melhor fisionomia intelectual.

Quase dez anos… pra tocar espontaneamente numa folha de papel e me propor a um “tema livre”. Quase dez anos que, por um triz, não foram uma vida inteira convencido que o que eu escrevia valia 3 pontos ou menos.

Foi o milagre que o RPG e meus amigos acabaram realizando em mim, quase sem eu perceber, que me salvou desse destino triste.

Quatro páginas escritas a mão, no meio do caderno universitário do primeiro colegial. Numa caligrafia terrível que certamente ocultava vários erros gramaticais. Ali estava uma história necessária para a continuidade do jogo. Escrita por mim.

–  Pedro, escrevi o que aconteceu com aquela maga que você perdeu de vista na floresta de Blademore.

– Deixa eu ler!

– Não… eu acho melhor eu ler… É que você não vai entender minha letra, sabe?

– Ok…

E eu li… Para ele e outro amigo em comum. Nenhum censurou minha entonação quando li uma palavra com duplo S que deveria ter sido escrita com cedilha. Ninguém notou nas minhas pausas naturais que o texto carecia dessas vírgulas ou daqueles parágrafos. Foi a primeira vez que tive a sensação que minha coleguinha do sorvete deveria sentir: Contar uma história inteira que, ao fim, não é mutilada em tinta-sangue.

Olhei para eles e meu amigo e vi expressões honestas de atenção, seguida de elogios e palavrões (também elogios. Especialmente para meninos de 15 anos). Parecia um episódio de “Além da imaginação”. Um outro universo, uma outra corda dimensional que se chamava “e se eu escrevesse bem?”.

Pouco a pouco fui entendendo o que esses professores (e alguns outros adultos) haviam feito comigo: Um atraso enorme na minha vida intelectual por causa de uma estima doentia pela gramática em detrimento do conteúdo.

Me dói fundo quando exponho toda uma ideia e alguém se levanta para apontar um “erro”. Não no raciocínio, mas na maneira que usei as letras. É como estar no pesadelo de um amigo, que me disse uma vez ter sonhado ser vítima de uma arriada de calças logo ao final de um discurso, desqualificando tudo que ele havia dito antes.

Parece que temos de nos preocupar mais em afivelar bem o cinto do que  com o conteúdo do que vamos dizer.

Quantos meninos não estão passando por isso exatamente agora, mas não vão ter a sorte que eu tive? Sorte de conseguir descobrir que nunca se tratou da qualidade do que escrevem, mas que  estão inseridos num mundo acadêmico que caducou e se esqueceu que seu principal objetivo é criar pensadores.

Para evitar os ataques às minhas calças, me esforço para não errar gramaticalmente. Mas é da minha natureza descuidar dos pequenos detalhes. Na minha própria arte gráfica é assim, mas ironicamente nunca recebi uma mensagem sequer criticando as proporções inconstantes dos meus personagens ou das perspectivas impossíveis dos meus cenários tortos  (apesar disso existir com muito mais constância e evidência que meus erros gramaticais).

Acredito que os protetores compulsivos da gramática diriam ser ridículo o indivíduo que criticasse tal coisa nos meus desenhos. Um ridículo tão facilmente identificado nesse exemplo, mas que acabam perdendo de vista em si mesmos.

JL