Brazil, 1964

– Comercial da Gelato, ein! Coisa de primeira! Tá feliz?
– Tô sim…
– Usa aquele vestido do seu baile de debutante.
– Eles arrumam a roupa lá…Só quero algo arrumadinho pra dar boa impressão…
– Vai ficar bem na frente do mercadão, né?
– Vai sim. Num outdoor!
– Todo mundo vai falar de você, Regina!
– Já imaginou? Que engraçado! Olha só! Não lmbrava disso aqui.
– O Auto da Compadecida? Vivia relendo!
– Ah, se quiser pode levar…
– Se cansou?
– Besta! Foi só pra peça. Já passou…
– Você era quem?
– A Compadecida, você sabe.
– A principal!
– Não. Os principais eram Chicó e João Grilo. Eu só apareço pro fim, sua boba.
– Mas a Compadecida é a mais importante.
– É…Salvou João Grilo, salvou um tanto de gente.
– Faz pra mim? A Compadecida.
– Você sabe como é! Lia isso mais que eu.
– Deixa de ser chata…Me mostra…
– Ai, tá…João Grilo cantou uma música e aí…
– Não! Faz como você fez! Como você falou.
– Ah, não lembro todas as falas. Lembro umas minhas e outras do Diabo.
– Fala o que você lembra.
– João Grilo pergunta se eu, a compadecida, me ofendi pela musiquinha que cantou pra me chamar. Era alegre.
– Não! Faz a Compadecida!
Calma, menina! Já chego lá! João diz que o Diabo enrasca com tudo, que tudo é falta de respeito e eu digo: “É máscara dele, João. O Diabo é muito apegado às formas exteriores.” Aí o Diabo diz algo assim:”Salvar todo mundo acaba desmoralizando tudo!” Aí eu falo pra Jesus: “Interceda por esses pobres, meu filho. Não os condene.” Quase tudo que eles faziam era por medo. E então não lembro…Ah! Tem outra que eu digo: “João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa.” E assim vai até Jesus se apiedar. E o Diabo, indignado por Jesus me dar ouvidos, fala: “Não tem jeito não. Homem governado por mulher, é sempre sem confiança!”
– Bonito…A Compadecida aparece pra dar um puxão de orelha em Jesus.
– Que pecado, Letícia!
– É, ele perdeu a compaixão por um momento. Queria preservar as regras vigentes, mesmo que isso custasse uma grande injustiça com os mais pobres, os mais vulneráveis.
Você acha melhor essa blusa rosa?
– Acho que a branca combina contigo. Ei, presta atenção! Ela se coloca no lugar dos mais pobres, sabe? Do sofrimento dessas pessoas oprimidas.
Lá no Nordeste é triste mesmo. Vou de saia? Ou é melhor uma calça?
– É uma alegoria, Regina. Aquela gente é toda a gente que sofre, em qualquer lugar. Eu passo por uns moradores de rua todo dia.
Ai, eu também. Dá um negócio né?
– Dá pena. Não é justo com eles. É isso que a Compadecida fala.
Passo Laquê? Tô pensando em deixar o cabelo solto. Me ajuda com o zíper? Não lembro como fica, acho que é aquele que aperta.
– Achei muito metafórico, sabe?
Pra variar, né Letícia!
– Foi sua primeira peça, não foi?
Peça séria, sim.
– E você não pegou o papel do Chicó, do João Grilo. Foi logo a Compadecida.
Não peguei porque era papel de homem.
– Você poderia fazer um homem.
Que isso! Papai não ia gostar e nem eu! Não sou uma invertida!
– Você foi a Compadecida, Regina. Parece até um sinal.
Sinal do quê, sua maluca?
– Seu primeiro trabalho como atriz ter sido através daquela Maria do Suassuna. A Compadecida. Isso é muito forte.
Sabe o que eu acho? Que você merece ficar com esse calhamaço!
– Eu não levo jeito pra atriz, Regina. É você que não pode esquecer…
Esquecer do quê, menina?
– De que você foi a Compadecida. Talvez ainda precise ser de novo…
Num filme! Imagina o sucesso!
– Não, Regina. Talvez você ainda precise lembrar alguém importante, que a vida dos mais vulneráveis importa.
Você deveria ser mais leve, Letícia.
– Como assim?
Vamos ver novela! É hoje que o Dr. Garcia vai tentar matar o D. Rafael!

JL