Patrícia

O tic-tac do copo, aquilo irritava Patrícia. Ela olhava pra comida interrompida, “tic-tac…tic-tac” tentando suportar o sonzinho, suportar o que sabia ser seu. A colherinha de café, usada pra tudo e deixada no escorredor sem lavar. Era o preço pra sua mania adquirida do “café depois tudo”.
Pra ser bem doce, sem fundinho de açúcar, era preciso tolerância ao “tic-tac”…”tic…tac”. Tem perdido a calma ultimamente. É a sensibilidade da quarentena, dizem. Deixa a colher e a busca obsessiva pela coisa homogênea.
Além do “café depois de tudo” adotou aquela coisa de “tomar um ar” na janela da sala. Coisa de velho…Tem tentado os livros bobos, programas de rádio, noticiários dos canais menores, dos monólogos, dos comentaristas sóbrios.
Da janela vinha frio, noite pontilhada das formigas elétricas, dos formigueiros insones em retângulos luminosos de vidro. Estava arrumada. De batom, vestido longo, perfume e bolsa pronta pra lugar nenhum. Até forrou a mesa, enfeitou de porcelana, pediu coisa fina no ifood.
Vem comer a sobremesa. – O viva voz chamou no whatsapp.
Patrícia vai sozinha, penteada, bonita pra si mesma. Mantém a ligação sem vídeo. Gostava de desencorajar a realidade. Eles se viam por fotografias.
Ela olhava pra mesa, pro celular apoiado na embalagem de lasanha do almoço. Se lembrava quando tinha gente ali. Um dia teve gente ali, ela tinha certeza, se lembrava.
Marcos estava, Valéria estava, Júnior estava. Seus 36 anos estavam.
O sentimento de falta também estava, mais amortecido que agora, mas estava.
A caixinha de isopor é aberta. Uma tortinha do Raggazzo: pequena e cara. Uma extravagância. Mas era de verdade e é raro comer coisa de verdade. A modernidade diz que coisa de verdade deve ser cara ou feita em casa.
Patrícia não tinha jeito pra cozinha. Achava bom sinal. Marcos também. Marcos…aquela fotografia falante. A novela brilhou pela penumbra da sala-cozinha.
Falas baratas, romances falsos. Até que se divertiu; descansou da vida; acompanhou com franqueza. Olhou nos olhos do ator, acreditou nele. Se apaixonou por dois segundos.
Arrumou os cachos, se levantou, foi até o banheiro acendendo luzes por medo do escuro. Olhou o espelho, se sentiu bonita. Desbotou uma selfie. Depois preferiu monocromática. Disse que tinha sono pra fotografia de Marcos. Desligou. Varreu o tapete por ansiedade. Deixou a louça pra trás por preguiça.
Decidiu descer, buscar o carro na garagem, no alto da noite.
Se ninguém via, ela sentia que o perigo também não via.
Não se preocupou com as maçanetas, com álcool em gel. Ligou o carro, o painel acendeu, a música interrompida do Still Corners voltou a tocar. A música da última vez. Patrícia não se lembrava da última vez.
Saiu pelas ruas vazias, espiando o mundo que os jornais diziam ter mudado. Um mundo iluminado nas luzes familiares da madrugada. Era o vazio de sempre, das altas horas. Do silêncio que precede o dia seguinte. Tudo inspirava uma normalidade iminente.
Como se dali a pouco, as ruas cuspissem um mar de gente, perdidas no vazio de sempre. A Pauliceia desvairada que Patrícia já sentia falta, feito uma irmã irritante que andou sumida por muitos anos.
Desligou o carro. Fingiu-se carro estacionado. Olhou pros letreiros acesos da drogaria SP. Segurou o choro. Parecia uma clareira de normalidade logo ali, decidiu entrar. Procurou nas prateleiras alguma coisa que precisava, uma cura.
Se demorou. A moça do caixa encontrou Patrícia encarando as caixinhas, consternada.
– tá foda. – ela disse.
E a moça do caixa fez que sim, como quem abraça.

JL