Seu Demervaldo

demervaldo

Demervaldo foi logo jogado numa daquelas carroças de trabalhador e assim foi chamado antes de ser chamado homem. Pisado na infância por causa das mãos desacostumadas, da mente lenta, das distrações fáceis. Seu Demervaldo cresceu dojeito que pode e conheceu Maria, uma moça. Seu Demervaldo jurou pra si que construiria uma família de verdade, com toda a beleza que não encontrou na sua e no passado.

Criou uma lista de utopias e se declarou pra Maria, que se apaixonou pela fé que tinha em si mesmo e na construção de um futuro brilhante. Construição… coisa de família.

Avô pedreiro, bisavô pedreiro, pai pedreiro e Demervaldo… zelador. Zelador porque não queria parecer com o pai, tão pouco com o avô. E o bisavô… O bisavô Demervaldo não nutria nada, por não saber nada. Apenas decidiu que, pela probabilidade, era melhor não gostar também.

Demervaldo se mudou pra uma casinha com Maria, fez questão de preparar o ninho pros dois… depois, logo cedo, pros três. Demervaldo se dedicava nos consertos, nas gambiarras, nas confecções dos móveis e todo tipo de penduricalho. Eram presentes pra Maria, ele dizia enquanto rosqueava parafusos, cerrava madeira, furava paredes. Maria vai ser mais feliz com essa prateleira. Maria vai ter menos trabalho com esse varal. O lar vai ser mais aconchegante com esse sofá, o menino vai brincar mais feliz com esse balanço.

A verdade é que Demervaldo descobriu ter os nervos fracos. E o menino urrava toda vez que se contrariava. A vida urrava toda vez que o dinheiro faltava e Maria emudecia, toda vez que Demervaldo se desmontava em desespero.

Maria desconfiava que Demervaldo se escondia pelas coisas da casa. Cada vez mais Demervaldo não se ouvia dizer. Apenas as batidas do martelo, os resmungos da furadeira, o esforço da chave Philips. Demervaldo parecia cada vez mais com a família que queria tanto destoar. Demervaldo se transformava em seu próprio pai, em seu avô.

Demervaldo tentava se redimir. Tentava fingir que os problemas da casa eram os problemas da vida. Suas ferramentas então pareciam o pináculo da meritocracia e logo se via homem, com as rédeas da vida nas próprias mãos.

Esperava (em segredo) que Maria visse algum dia que aquelas bobagens eram o seu melhor. Demervaldo não podia ser mais do que aquelas coisas, não era capaz de impulso mais nobre que aqueles impulsos reparatórios. Aquelas coisas que o menino usava, que Maria via brotar pelas paredes, pelo quintal, na caixinha de brinquedos, na pia da cozinha.

Talvez Demervaldo se dedicasse tanto às soluções da casa, por serem os únicos problemas que ele tinha aprendido a resolver, que eram problemas que angustiavam, mas não maltratavam como o silêncio de Maria, ou os urros do menino.

Um dia Maria parou de fazer comida para Demervaldo, num ato de revolta. Demervaldo tentou não culpar Maria e culpou a si mesmo. Tomou um punhado de serragem nas mãos e passou a comer aquilo.

Um dia, no seu aniversário, Maria foi de bom grado chamá-lo no quartinho dos fundos, para comer um pedaço de bolo, junto de seu menino.

Chegando lá Demervaldo havia se transformado numa chave Philips.

“Papai está ocupado… Coma o pedaço dele, ele não vai se importar”

Hoje, quando seu novo marido precisa reparar alguma coisa, Maria empresta Demervaldo com uma ressalva: Só não serve se for precisar apertar muito.

E normalmente Demervaldo não servia pra nada…

JL