A cidade irá devorar uma pessoa essa noite

noite
Todos sabiam que esse dia chegaria, mas é sempre espantoso lidar com a ideia.
Voltamos mais cedo do trabalho, nos trancamos por empatia. Como nos trancaríamos se fôssemos nós. Como nos trancaremos quando formos nós…
Ligamos a televisão, aumentamos o volume, cozinhamos algo bom, reunimos amigos. Todos em compaixão, tentam bater os talheres com mais força, tentam rir por mais tempo e mais alto.
O cachorro late ante ao frenesi, o cachorro não entende, o cachorro é poupado de certas verdades. Nos abrigamos em seu olhar ingênuo e ficamos por longos minutos… Como deve ser doce a vida breve de um cachorro, que não se pergunta como a comida chega na tigela, nem a índole daqueles que afagam sua barriga.
A televisão nos faz o favor de contar uma história sem sal, de alguém bonito, com tristezas críveis, mas nunca críveis demais. Salpica um ar de esperança ingênua. O capítulo acaba com uma sensação de saciedade e vontade (não agonia) de estar sentado ali amanhã… Sim, a novela nos faz sentir que haverá amanhã.
A sobremesa chega, enquanto a cozinha aquece a casa e perfuma os corações tão espremidos. Tão cheios de preocupações veladas com a pessoa que será devorada.
Já desistimos de tentar culpá-la. De dizer, em tom amedrontado, que se ela tivesse batido em nossa porta, nós abriríamos, ofereceríamos uma amizade instantânea e a cidade não a pegaria. A cidade devora solitários, sempre soubemos disso. Relembramos isso, enquanto tentamos não chorar. Enquanto falamos com a voz embargada sobre o novo cartão sem anuidade, o apresentador pseudo-intelectual da TV.
Talvez já tenha acontecido. Fingimos que não. Nos agarramos em qualquer assunto. Qualquer assunto em absoluto. Nos debruçamos nele com atenção exagerada, como um pequeno cômodo que não nos cabe, que tentamos caber.
Era alguém… como nós. Os pensamentos escapam da colher. Nos silêncios das vírgulas. Nos olhares em desencontro
Todos sabiam que esse dia chegaria… Sabemos que um dia seremos nós.
A meninice nos faz olhar para nossos mais sinceros amigos e desacreditar nesse destino. “Nossos amigos”, dizemos, enquanto nos abraçamos.
São amizades da cidade. É uma casa da cidade, somos pessoas da cidade.
A cidade não nos dá nada. Dizer “nosso” é simular uma certa dignidade, para evitar ataques de pânico e antidepressivos.
O vento sopra mais forte lá fora, estremecemos.
Estávamos tão articulados para não deixar escapar ruídos lá de fora… Minha prima gagueja. Tenta manter como pode uma naturalidade.
“Podia haver um grito nesse vento… Graças a Deus não houve”
Antes das três últimas colheradas no pudim, pensamos em algo para nos salvar os ouvidos. Um jogo? De cartas. Canastra. Bebida. Para nos deixar altos. Os saltos do álcool, a neblina da altitude, embaça a terra que negamos pisar.
Meu primo não está lá… mas não é a pessoa da cidade… É assim que chamamos o desavisado, provisoriamente “pessoa da cidade”.
Meu primo está com a namorada, numa cidade do interior, me enviando mensagens de áudio, tentando abafar o silêncio da noite como pode.
Foi a mãe dele que nos contou como acontece.
“A cidade sabe esperar. As amizades se esparsam, a profundidade diminui gradativamente, até não sobrar sequer um cumprimento.
É lento, para que nos acostumemos. Para que, no dia em que formos não pensemos ser.
Então simplesmente nos flagramos numa rua. Sozinhos. E pensamos ‘que estranho’… E a cidade já nos devorou.

JL