A origem

genesis
Existe um universo, onde cada coisa possui uma vida esperada.
Dentro de um cubículo, uma moça desinteressante olha frustrada para sua xícara rachada.
Daquela xícara era esperado que durasse gerações intacta, que fosse passada assim, intacta, para seu futuro filho. Esse a passaria para sua futura neta e assim por diante.
Essa xícara; singela, de certo requinte; despertaria uma inspiração aguda em Solange, sua futura bisneta.
Acontece que, nesse universo, os acontecimentos não deixam de existir quando acontece o inesperado numa vida esperada. Esse universo cria uma outra dimensão, para que as coisas esperadas se concretizem.
Não sei dizer se agora aponto para o universo certo, aquele que me referi no início, ou se apenas divago sobre uma bifurcação…
Talvez o correto fosse eu contar sobre aquele que cumpriu a vida esperada da xícara, pois era o universo onde cada coisa possui uma vida esperada.
Porém algo interessante aconteceu num dos universos inesperados… naquele que surgiu no momento em que a xícara rachou.
A moça desinteressante, Mirela, olhou a xícara num lamento dolorido, que instigava dentro dela outras frustrações reprimidas. “É uma xícara de chá”, ela pensou, “supostamente deveria resistir à água fervendo, à minha boca fria…”. Mas tudo que ela pôde fazer foi se queixar por cinco minutos e guardar a xícara na parte de baixo do armário da televisão.
Os anos foram levando a importância do objeto. Não para Mirela, que guardava toda sua estima e lembranças… Mas, pela vergonha que sentia em admitir o incidente, preferiu dizer que a perdeu. Isso fez com que Solange não fosse tê-la ante de si.
A falta daquela xícara tão arraigada a sentimentos cruciais fez com que Solange não florescesse como artista. Solange teve uma vida cinza em sua adolescência e se trancou em laboratórios de química, onde desenvolveu algo espantosamente perigoso se caísse em mãos erradas.
Aquela invenção foi despertada num fulgor frente a um botão de estanho (Ela saberia explicar seus motivos melhor que eu, mas acredite, foi ligeiramente inspirador… não tanto quanto a xícara de Mirela seria).
E Solange não poupou esforços para fazer possível aquele impossível… prometeu que nunca revelaria tal coisa àquele mundo tão mesquinho… Acabou fazendo, por dinheiro, por desespero, por solidão (uma herança de sua bisavó Mirela).
O mundo devorou sua invenção, o mundo acabou por ser dizimado, como era esperado.
Uma explosão muda, num vazio escuro. Então reações químicas, em homenagem a Solange, foram responsáveis por uma série de outros efeitos, que se deram em outros… E de efeitos tão distantes, tão distintos, os efeitos atuais já se achavam órfãos, incapazes de traçar sua árvore genealógica completa.
Esses passageiros efeitos colaterais, sem ter a quem chamar em suas lembranças mais remotas, inventaram algo para evitar a solidão (uma herança remota de Mirela). Apelidaram a invenção com carinho e com muito otimismo. Diziam que, como eles próprios eram tão magnânimos, essa lacuna deveria ser preenchida por um ser ainda mais magnânimo, já que ele deu origem a tantos desdobramentos fascinantes.
Ergueram templos em seu nome. Ouviam seus sussurros no silêncio. Matavam em seu nome. Salvavam em seu nome. Morriam em seu nome.
Alguns efeitos colaterais atribuíram seus inventos mais espantosos em homenagem a esse criador (inclusive esse era um de seus apelidos carinhosos: criador). Diziam com tanta comoçao “Apenas ele para inspirar algo tão acima das minhas mortais limitações”.
Um dia, por grave preocupação, a xícara saiu de um brexó barato e se apresentou diante daqueles efeitos colaterais tão cheios de amor e admiração equivocadas.
O céu se abriu num clarão e todos viram descer lentamente uma xícara. Antes que pudesse comunicar qualquer coisa, alguém a tomou nas mãos e disse:
“Eis um presente de Deus”.

JL